JOTA | QUEM PODE FIGURAR COMO ÁRBITRO NA ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA?

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Públicada em: quinta-feira, setembro 12, 2019

Fonte: Jota | Publicado em 04/09 | Clique aqui para ver a publicação original

Quem pode figurar como árbitro na arbitragem tributária?

Por: Leonardo Varella Giannetti

Como sequência à série de textos sobre arbitragem tributária que foram publicados nesta coluna do Jota nos últimos dois meses, ressaltamos um tema sensível que surge à cabeça quando se pensa na construção de um modelo possível de arbitragem tributária: quem poderá exercer a função de árbitro? O presente texto busca colaborar neste debate, trazendo algumas considerações importantes.

Especialização, imparcialidade e independência como características essenciais ao árbitro

A pessoa que for indicada para a função de árbitro deverá demonstrar conhecimento técnico na matéria, adquirido em razão da prática profissional, 1 sendo certo que ele pode ser especialista em determinados tributos apenas, aumentando, assim, o nível de especialização e conhecimento técnico necessário a legitimar, ainda mais, a decisão arbitral. 2

Além da especialização, duas outras características são essenciais ao árbitro: atuar com imparcialidade e independência. É uma afirmação comum que o sucesso da arbitragem depende da boa atuação do árbitro. O modo pelo qual ele atua determina o êxito ou o fracasso do instituto. Por isso, a atuação imparcial e independente de qualquer árbitro, seja o indicado pela parte, seja o árbitro presidente ou outro designado pela instituição de arbitragem ou judicialmente, é questão muito relevante para a matéria. Se hoje, no Brasil, a arbitragem vem crescendo e sendo valorizada, isso decorre em especial da atuação conjunta de instituições de arbitragem, associações e dos profissionais que atuam na área e que, de forma cotidiana ou não, figuram como árbitros em procedimentos realizados aqui e no exterior.

O art. 13 da Lei 9.307/96 prevê que “pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes”. Confiança é algo que se constrói e conquista com o tempo e pela prática e modo de atuação do profissional. Afinal, apesar de indicado, o árbitro não é mandatário das partes, como estas, em algumas situações, equivocadamente chegam a pensar. 3 A doutrina, em regra, diferencia a imparcialidade da independência, o que pode não ter muita relevância prática 4. A primeira possui relação com o objeto do litígio e a segunda se refere à relação do árbitro com as partes. Julgar com imparcialidade é atuar de forma livre e sem influência que possa contaminar a decisão ou a posição do árbitro. É se portar de modo que reste clara a ausência de interesse imediato do árbitro com determinado resultado.

É bom lembrar, contudo, que imparcialidade não se confunde com neutralidade 5, pois ninguém consegue julgar despido de suas convicções, crenças e valores sócio-políticos. O ato de interpretar não é mecânico, sendo certo que as experiências, as pré-compreensões que o intérprete carrega em sua história de vida estão presentes no momento do julgamento. Juízes divergem porque partem de concepções ou premissas distintas. 6

Independência, por sua vez, é a qualidade necessária para que o árbitro julgue sem qualquer pressão política, econômica, profissional ou moral, de modo que ele seja livre para tal função. Esses dois conceitos são tratados com frequência nos códigos deontológicos das instituições de arbitragem.

Há situações que impedem a atuação de determinada pessoa como árbitro ou justificam sua posterior recusa. Afinal, essas duas características são exigíveis não só antes como no curso do processo. No âmbito da Lei 9.307/96, há a preocupação de o árbitro não possuir relação pessoal nem familiar com as partes ou com seus procuradores ou interesse econômico e financeiro com a questão a ser decidida capaz de comprometer o exercício de tal importante função. Além do que está previsto na lei doméstica, é importante lembrar que se a arbitragem for institucional (que representa a grande maioria dos casos na prática), as partes e os árbitros (seja qual for a forma de escolha e indicação) deverão observar o respectivo regulamento da câmara ou centro de arbitragem, que preveem o controle ético de atuação dos árbitros.

A lei brasileira equipara o comportamento ético do árbitro ao do juiz de direito, vinculando o primeiro aos mesmos deveres impostos aos juízes pelo Código de Processo Civil. 7 Entre as hipóteses previstas no CPC de 2015, a grande maioria repetição do já previsto no CPC de 1973, nota-se a preocupação de impedir qualquer forma de pressão ou influência no árbitro, capaz de gerar dúvida sobre sua independência e imparcialidade. Por isso, entre outras hipóteses, o juiz está impedido de atuar no processo quando figurar como parte instituição de ensino com a qual tenha relação de emprego ou decorrente de contrato de prestação de serviços ou quando figurar como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório, bem como em processo em que estiver postulando, como defensor público, advogado ou membro do Ministério Público, seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive.

Outro ato normativo que pode ser lembrado por justamente estabelecer restrições aos julgadores é o Regimento Interno do CARF, especialmente pelas recentes alterações que buscam, entre outras, conferir maior controle e segurança na atuação dos conselheiros. Segundo o art. 42 do citado RICARF, o conselheiro estará impedido de atuar no julgamento de recurso, em cujo processo tenha: I – atuado como autoridade lançadora ou praticado ato decisório monocrático; II – interesse econômico ou financeiro, direto ou indireto; e III – como parte, cônjuge, companheiro, parente consanguíneo ou afim até o 3º (terceiro) grau.

O regimento também prevê que haverá interesse econômico ou financeiro, direto ou indireto, capaz de acarretar a incidência da norma de impedimento, em duas situações. Primeiramente, nos casos em que o conselheiro representante dos contribuintes preste ou tenha prestado consultoria, assessoria, assistência jurídica ou contábil ou perceba remuneração do interessado, ou empresa do mesmo grupo econômico, sob qualquer título, no período compreendido entre o primeiro dia do fato gerador objeto do processo administrativo fiscal até a data da sessão em que for concluído o julgamento do recurso. Em segundo lugar, no caso de conselheiro que faça ou tenha feito parte como empregado, sócio ou prestador de serviço, de escritório de advocacia que preste consultoria, assessoria, assistência jurídica ou contábil ao interessado, bem como tenha atuado como seu advogado, nos últimos dois anos.

E também vinculado ao tema, merece destaque um dos itens das Diretrizes da IBA relativas a Conflitos de Interesses em Arbitragem Internacional 8 aprovadas em 22 de maio de 2004 pelo Conselho da International Bar Association (IBA) no sentido de que existem dúvidas justificáveis quanto à imparcialidade ou independência do árbitro se houver uma identidade entre uma das partes e o árbitro, se o árbitro for representante legal de pessoa jurídica que integra um dos pólos do procedimento arbitral, ou se o árbitro tiver interesse pessoal ou financeiro significativo no objeto da demanda.

Nota-se, assim a preocupação em se vedar a atuação do profissional indicado como árbitro que teve vínculo recente com o sujeito passivo ou com o escritório que lhe presta assessoria, justamente para evitar interferências que afetem sua imparcialidade. Isso é saudável e deve ser privilegiado, pois confere credibilidade ao instituto.

Pois bem, sendo instituída a arbitragem tributária no Brasil, certamente figurarão como árbitros ex-conselheiros do CARF e de outros Conselhos de Contribuintes, além de servidores públicos aposentados, outrora vinculado aos órgãos de fiscalização e às Procuradorias9, bem como advogados tributaristas, consultores de empresas de auditoria, professores universitários e magistrados aposentados. Todos eles irão se candidatar para figurar em listas de árbitros vinculadas às instituições credenciadas para administrar as arbitragens que envolvam a matéria tributária e, uma vez aprovados pelos referidos centros e nomeados para um caso particular, deverão cumprir com muito rigor o dever de revelação dos vínculos profissionais anteriores. E nesse ponto, um período de “quarentena” para os servidores públicos e advogados é necessário, de forma a evitar que atuem, antes de determinado prazo, para aquela parte com o qual já possuíram relacionamento profissional duradouro.

No regime jurídico da arbitragem tributária portuguesa (RJAT), criado em 2011, há a previsão de um prazo de dois anos de impedimento à atuação como árbitros para as pessoas que ocuparam cargos na administração tributária ou prestaram serviços jurídicos ao sujeito passivo ou que tiveram vínculo com o escritório de advocacia que tenha prestado serviços jurídicos e de auditoria ao sujeito passivo. 10

Por sua vez, a cláusula prevista no art. 95, parágrafo único, V, da CF/88, que veda que o magistrado, de qualquer instância retorne à advocacia e atue junto ao juízo que exerceu o cargo antes de três anos da sua aposentadoria ou exoneração 11 pode ser um bom indicativo para definir o prazo de quarentena aos árbitros, impedindo-os de atuar em litígio em que figure uma das partes com a qual o profissional teve algum relacionamento profissional.

Outra regra de controle ou limitação de autuação do indicado a árbitro passível de ser aplicada à arbitragem está prevista no art. 6º da Lei Brasileira de Mediação (Lei 13.140/2015), no sentido de que “o mediador fica impedido, pelo prazo de um ano, contado do término da última audiência em que atuou, de assessorar, representar ou patrocinar qualquer das partes”. Disposição similar está prevista no recente projeto de lei nº 4.257/2019, de autoria do Senador Anastasia, que assim prevê: “nenhum árbitro pode decidir mais de um processo do mesmo particular ou do grupo econômico do qual este faça parte o particular por ano”.

Esses são prazos possíveis para o regime estudado, sendo que caso se opte por um modelo de arbitragem tributária que busque conferir mais segurança e paridade com o sistema processual brasileiro, entende-se que pode ser adotado o prazo de “quarentena” de 03 (três) anos, tal qual o previsto no art. 95, parágrafo único, V, da CF/88. 12

Do dever de revelação

Outro ponto essencial para a pessoa que for indicada para atuar como árbitro é cumprir de modo transparente o seu dever de revelação como forma de se permitir o efetivo controle deontológico dos árbitros. Deve-se esclarecer que, mesmo passado o mencionado prazo impeditivo de quarentena, qualquer relação de vinculação profissional ou negocial pretérita entre o árbitro e uma das partes ou seus advogados certamente é situação que irá gerar dúvidas quanto à imparcialidade ou independência, motivo pelo qual fatos desse quilate deverão ser expressamente revelados. Isso porque a arbitragem possui uma particularidade: mesmo que uma situação de impedimento não exista, a pessoa indicada como árbitro pode ser, em tese, recusada, desde que haja alguma situação concreta que comprometa sua imparcialidade. No regime português (art. 8º, nº. 2, RJAT), há a previsão de que “a pessoa designada para exercer funções de árbitro deve rejeitar a designação quando ocorra circunstância pela qual possa razoavelmente suspeitar-se da sua imparcialidade e independência.” Isso certamente deve se aplicar a qualquer modelo de arbitragem tributária que venha a ser criado no Brasil.

Pois bem, na arbitragem se preza bastante pela atuação transparente dos profissionais, de modo que caberá às pessoas indicadas como árbitros cumprirem rigorosamente o dever de revelação 13 no momento da indicação como no curso do processo se novas circunstâncias acontecerem, pois ele é contínuo. 14 Ou seja, as pessoas indicadas para tal função devem apontar os fatos relevantes pretéritos ou atuais que podem suscitar dúvidas razoáveis aos olhos das partes que podem gerar dúvida sobre a imparcialidade e independência da pessoa nomeada para tal função. Enumerar essas situações é tarefa difícil, pois há particularidades do caso concreto que devem ser previamente analisadas para se saber se há ou não justificativa para a recusa de determinada pessoa para figurar como árbitro.

O que é relevante é que o árbitro também se coloque na posição das partes, ou seja, ele deve fazer uma ponderação crítica a ponto de revelar não apenas o que, ao seu juízo, deve ser exposto ou indicado, mas ele deve, principalmente, colocar-se no lugar das partes e se perguntar se ele, caso fosse parte, gostaria de conhecer tal fato. Regras deste tipo estão previstas no regulamento de arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI) e no Código de Ética do CAM-CCBC, bem como no regulamento de arbitragem da CAMARB.

Em síntese, duas orientações merecem maior destaque: a primeira se refere ao dever de o árbitro não privilegiar uma das partes em detrimento da outra ou de mostrar predisposição para determinados aspectos correspondentes à matéria objeto do litígio. A segunda se refere à definição de parcialidade e tendência, qualificada como a situação pessoal do árbitro frente às partes e seus advogados ou, quanto à matéria objeto do litígio, que possa afetar a isenção do seu julgamento no caso concreto. Essas duas questões são bastante sensíveis ao direito tributário.

Isso porque, ao nos depararmos com as questões tributárias que serão analisadas no processo arbitral, indagamos sobre como atuarão os árbitros cujas carreiras, em geral, sempre defenderam apenas o ponto de vista de um dos lados. Essa é uma particularidade do direito tributário. No direito privado, em regra, um advogado especialista em direito societário ou em responsabilidade civil atua ora para uma empresa, ora para outra, sem um lado polarizado ou definido. 15

O direito tributário, por sua vez, atua de forma distinta, pois é muito comum termos os advogados elaborando, durante toda a sua carreira, trabalhos e teses a favor dos contribuintes e advogados públicos e auditores defendendo o ponto de vista do Ente tributante. Há sempre, em algum grau, uma polarização, inerente à tradicional relação conturbada que há entre Fisco e contribuinte.

A prática nos mostra que dificilmente um advogado que sempre defendeu interesses dos contribuintes é contratado pelo Poder Público. É rara uma situação em que ambos convergem para o mesmo entendimento, tal qual ocorreu no famoso caso American Virginia (AC 1657), em que uma entidade (associação) que congrega grandes contribuintes atuou como assistente ao lado e a favor da União, buscando repelir práticas anticoncorrenciais e de sonegação fiscal praticadas por uma outra empresa do ramo de tabaco. Tanto que essa situação chamou a atenção do Ministro Cézar Peluso, que ele a consignou no seu voto. 16

Até o fato de o profissional já ter sido indicado como árbitro da parte em outras ocasiões deve ser revelado, merecendo destaque, nesse sentido, decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que anulou sentença arbitral porque o árbitro havia sido indicado pela mesma parte ou pela sociedade de advogados que a representa mais de cinquenta vezes nos últimos três anos, justamente por configurar situação que suscita sérias dúvidas sobre a imparcialidade e independência do referido árbitro. 17

Outro ponto relevante envolve os trabalhos profissionais já desenvolvidos na carreira do advogado, do professor ou mesmo do julgador administrativo. Imaginemos a situação de professores renomados que elaboram pareceres em prol de associações civis e sindicais ou de determinados contribuintes, com o intuito de serem anexados a processos administrativos e judiciais como argumentos adicionais para corroborar a tese por eles defendida. Trata-se de prática comum, principalmente em processos que tramitam junto ao STF e STJ diante da repercussão geral envolvida (transcendência dos interesses em disputa), no qual há sempre a figura do amicus curiae.

Algumas indagações já surgem à mente. Primeiramente, o fato de um advogado elaborar um parecer sobre determinada matéria o impede ou o torna suspeito de atuar como árbitro em um processo cujo litígio que envolva questão jurídica similar ou que tenha vinculação?

Em segundo lugar, apesar de ser obrigatória a divulgação inerente ao dever de revelação, uma das partes poderia recusar o perito ou impugnar sua nomeação em uma situação como essa? E ainda: em relação aos trabalhos profissionais anteriores realizados, quais deles poderiam ser qualificados como “qualquer interesse, direto ou indireto, em questão semelhante à que deva ser decidida” capaz de colocar sob suspeita o profissional indicado para o cargo de árbitro?

Não há como responder positiva ou negativamente a essas questões sem analisar o contexto fático envolvido, ou seja, dependerá do alcance e vinculação de identidade entre a matéria objeto do litígio e a manifestação anterior de autoria do profissional sobre determinada matéria. Quanto maior o alcance e vinculação de identidade entre a matéria objeto do litígio e a manifestação anterior de autoria do profissional sobre determinada matéria, maior serão as chances de existir um impedimento e, por consequência, razão para sua impugnação caso venha a ser indicado como árbitro.

As diretrizes (Guidelines) editadas pela Internacional Bar Association (IBA) estabelecem, além de orientações e explicações sobre princípios gerais de conduta e controle ético dos árbitros, uma listagem não taxativa de situações assim divididas: aquelas em que os árbitros estariam impedidos de atuar (lista vermelha); as que os árbitros seriam obrigados a revelar, mas não impedem, a princípio, sua escolha (lista laranja); e as hipóteses em que o árbitro não teria sequer de revelar (lista verde). 18 Entre as situações descritas na lista verde consta a de o árbitro ter publicado um artigo acadêmico relativo a uma matéria que tangencia o objeto da arbitragem, mas que não se refere especificamente ao caso objeto da arbitragem. 19

Essa é uma situação bem presente no cenário tributário brasileiro. Imaginemos, por exemplo, um caso específico de planejamento tributário que envolva diversas particularidades. Nessa situação, um jurista do quilate do professor Marco Aurélio Greco estaria impossibilitado de participar simplesmente por ter uma das principais obras jurídicas sobre o tema? Ou, eventualmente, uma questão que envolvesse um auto de infração cujo cumprimento dos requisitos formais seria questionável: nessa hipótese, o fato de o professor Hugo de Brito Machado Segundo possuir obra relevante de processo tributário o impediria de participar como árbitro?

Acredita-se que não, pois a produção doutrinária desses estudiosos apenas tangencia parte do tema versado no conflito, mas tende a não enfrentar diretamente o cerne da questão litigiosa. 20

Por outro lado, a produção anterior da pessoa indicada como árbitro de um parecer ou trabalho específico sobre a matéria objeto do litígio possui outro tratamento, pois difere da hipótese anteriormente transcrita. Essa situação não passou despercebida pela IBA, que incluiu esse tipo de situação na lista laranja dos Guidelines, no qual há uma “enumeração não-taxativa de situações específicas que (à luz dos fatos pertinentes a uma determinada controvérsia) possam, aos olhos das partes, suscitar dúvidas justificáveis quanto à imparcialidade ou independência do árbitro”. 21 Surgirá, nessa situação, o dever de revelação, sendo certo que o fato revelado não implicará, por consequência lógica, a existência de um conflito de interesses, nem que o árbitro será automaticamente considerado parcial. Como consta nas explicações da própria IBA ao referido item:

O objetivo da divulgação é informar as partes a respeito de determinada situação que elas desejariam examinar melhor para apurar se, objetivamente (sob o ponto de vista de um terceiro razoável com conhecimento dos fatos relevantes), existem dúvidas justificáveis quanto à imparcialidade ou independência do árbitro. Se a conclusão for pela inexistência de dúvida justificável, o árbitro poderá atuar. 22

Mas o tema não é realmente simples. Isso porque a escolha dos árbitros pelas partes é uma das etapas mais importantes em uma arbitragem, sendo certo que ela não é feita sem qualquer estratégia ou de forma aleatória. É importante saber se o profissional que será indicado possui, entre outras qualidades, conhecimento da matéria objeto do litígio. Afinal, uma das grandes vantagens da arbitragem é justamente a possibilidade de se escolher um julgador que tenha experiência técnica e prática na matéria objeto da controvérsia. Imaginando uma situação envolvendo o imposto de renda, deve-se saber se o profissional indicado – que pode ser advogado, auditor, professor ou mesmo um antigo conselheiro do CARF – atuou com esse tipo de imposto. Quem, por exemplo, não gostaria de ter um caso de imposto de renda julgado por um tribunal arbitral que tivesse a presença de profissionais do quilate de Ricardo Mariz de Oliveira, de Luís Eduardo Schoueri ou de Sérgio André Rocha, que possuem notória especialização e conhecimento sobre o citado tributo?

Assim, o “melhor árbitro possível” não será aquele que defenderá a posição da parte que o nomeou – essa tarefa de defesa cabe ao advogado -, mas aquele a quem a parte lhe depositou confiança no cumprimento de seu mister. Ao árbitro cabe tomar a melhor decisão possível, que será aquela tomada após a devida atenção e consideração aos argumentos das partes e das provas por elas apresentadas. Mesmo que a parte, realmente, queira indicar um árbitro que se alinhe ao seu entendimento, é certo que tal conduta pode lhe ser extremamente prejudicial. Afinal, como relata Nuno Lousa, “quanto mais partidário era um árbitro nomeado por uma parte, menor era sua capacidade de influência junto do presidente do tribunal arbitral”, 23 levando-o sempre a colocar uma dose de desconfiança nas manifestações desse árbitro.

Tende a ser excessivo impedir o advogado ou o consultor jurídico de aceitar a nomeação como árbitro pelo simples fato deste ter tido contato com parte de determinadas situações que tangenciam a matéria controvertida e tenha sobre elas se manifestado, ainda que parcialmente, no exercício da sua atividade profissional. Não haveria impedimento porque, por desconhecer a situação na sua totalidade, ele não teria condições de ter alguma predisposição relevante para decidir o caso de determinada forma. 24

Realmente, não se deve esperar que qualquer das partes indique alguém como árbitro sem realizar uma análise prévia de seu entendimento ou posicionamento sobre a matéria jurídica subjacente ao debate. E a indicação de um profissional que tenda a possuir alguma simpatia com o tema envolvido não importa em qualificá-lo como parcial ou suspeito. Mas caberá ao árbitro sempre ser bem transparente e firme na sua posição, sob pena de haver duplo prejuízo: a parte que indicar perder e o árbitro tendencioso ficar no ostracismo e perder sua reputação. 25

O que a doutrina e o próprio IBA acentuam é que o árbitro não poderá ter tido contato com o objeto do litígio nem poderá ter se pronunciado sobre o ele. Entretanto, adotar uma concepção muito restritiva irá inibir a atuação, na arbitragem, de profissionais que iriam colaborar bastante com essa via e que teriam, por outro lado, uma característica essencial da arbitragem: o julgamento por especialistas. Pensando na arbitragem tributária, o fato de um profissional ter atuado por anos (senão décadas) como advogado em causas contra a Receita Federal ou mesmo o contrário (situação do auditor fiscal ou do Procurador da Fazenda Nacional que se exonerou ou aposentou) não pode ser argumento para impedir sua atuação como árbitro.

Conclusão

A questão da composição do tribunal arbitral é tema essencial para o desenvolvimento da arbitragem tributária, o que envolve a análise da atuação imparcial e independente dos profissionais indicados ou nomeados como árbitros. Por isso, estabelecer algumas regras de impedimento são necessárias. A criação de um modelo de arbitragem tributária deve compartilhar da rica experiência da prática e da doutrina elaborada pelos profissionais envolvidos com a arbitragem doméstica e internacional, o que inclui a expertise acumulada e presente nos centros de arbitragem de idoneidade já reconhecida, que enfrentam o tema do controle ético da atuação dos árbitros há muito tempo. As particularidades do direito tributário são relevantes e devem ser consideradas na criação do modelo de arbitragem tributária, mas não há dúvida que estas particularidades deverão ser acomodadas com as práticas e experiências já existentes na arbitragem tradicional e já desenvolvida no Brasil e no exterior. Por isso, a polarização que realmente existe na prática do direito tributário terá de ser amenizada com o cumprimento rigoroso do dever de revelação, de modo que os fatos pertinentes à vida profissional da pessoa indicada como árbitro devem ser objeto do dever de revelação.

Dessa forma, a pessoa indicada ou nomeada como árbitro não poderá ter tido contato com o objeto do litígio nem poderá ter pronunciado sobre ele anteriormente. Mas o fato de já ter se pronunciado oralmente ou por escrito sobre o tributo em discussão ou tangenciado uma questão jurídica subjacente ao conflito, mas sem enfrentar especificamente a questão objeto do litígio, não o impede de participar do tribunal arbitral. Assim, a análise dos fatos indicados pelo árbitro ao cumprir o dever de revelação deve ser feita com cuidado e parcimônia para se evitar a recusa imoderada das indicações, frustrando justamente uma das características da arbitragem, que é a decisão dada por especialistas.

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1 Como na advocacia pública e privada, consultoria, magistério, magistratura, participação em Conselhos de Contribuintes.
2 Como bem reconhece Marcelo Escobar, “entendemos que a tecnicidade seja não apenas o diferencial teórico da arbitragem, mas que as decisões que não a estamparem minarão a aplicação do instituto.” ESCOBAR, Marcelo Ricardo. Arbitragem Tributária no Brasil. São Paulo: Almedina, 2017, p. 242.
3 Vide GOUVEIA, Mariana França. Curso de resolução alternativa de litígios. 3.ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 202; LEMES, Selma. Árbitro. Princípios da Independência e da Imparcialidade. São Paulo: LTr, 2001, p. 96.
4 Para Mariana França Gouveia (ob. cit, p. 204), essa diferenciação não tem muita consequência prática, uma vez que a ausência de uma delas será suficiente para justificar a recusa.
5 Vide LEMES, ob. cit., p. 63-68; CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. Um comentário à Lei nº 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2009, p. 240; BERALDO, Leonardo de Faria. Curso de Arbitragem: nos termos da Lei 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2014, p. 250.
6 Para Marciano Seabra Godoi, “os intérpretes divergem entre si porque a interpretação jurídica é uma tarefa que não se pode cumprir sem uma considerável carga criativa, e sem que muito frequentemente entrem em ação determinadas convicções do intérprete (convicções que podem mudar com o passar do tempo e com a alteração do quadro político-institucional do país) sobre o que é e quais são os fundamentos dessa instituição social a que chamamos direito. (FERRAZ, Luciano; GODOI, Marciano Seabra de; SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 326.
7 Art. 14. Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil.
8 IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Esse guia de diretrizes foi objeto de alterações em 2014, sendo que tal dispositivo teve redação alterada, mas mantendo-se a mesma linha de raciocínio. O teor do texto atual é o seguinte: “Justifiable doubts necessarily exist as to the arbitrator’s impartiality or Independence in any of the situations described in the Non-Waivable Red List.” Há uma versão em espanhol. A versão em português é do Guideline de 2004.
9 Marcelo Escobar entende possível que um servidor público ainda na ativa poderia figurar como árbitro, desde que a Lei Orgânica correspondente assim permita e não se trate de conflito que envolva as secretarias, ministérios e demais pastas em que o servidor atuou. (ESCOBAR, ob. cit., p. 244-245).
10 Vide RJAT, art. 8º, 1.
11 “Aos juízes é vedado: exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração”.
12 Marcelo Escobar entende que o impedimento do indicado a árbitro deve ser perene quanto ao local de trabalho onde a experiência foi adquirida, e não meramente temporário. Para o citado autor, os advogados “estariam impedidos perenemente de atuar nos procedimentos onde figurasse qualquer ex-empregador ou cliente dos quais tenha recebido procuração, independentemente de ter atuado diretamente no caso.” Quantos aos servidores públicos, “o óbice consistiria na participação na arbitragem do departamento onde estão ou estiveram alocados.” (ESCOBAR, ob. cit., p. 244).
13 Art. 14, § 1º, Lei 9.307/96: As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência. § 2º O árbitro somente poderá ser recusado por motivo ocorrido após sua nomeação. Poderá, entretanto, ser recusado por motivo anterior à sua nomeação, quando:a) não for nomeado, diretamente, pela parte; ou b) o motivo para a recusa do árbitro for conhecido posteriormente à sua nomeação.
14 Art. 14, § 1º, Lei 9.307/96: As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência. § 2º O árbitro somente poderá ser recusado por motivo ocorrido após sua nomeação. Poderá, entretanto, ser recusado por motivo anterior à sua nomeação, quando:a) não for nomeado, diretamente, pela parte; ou b) o motivo para a recusa do árbitro for conhecido posteriormente à sua nomeação.
15 Salvo algumas poucas situações que envolvem advogados especializados em direito de consumidor, no qual se verifica, em regra, advogados especializados em defender as instituições bancárias, empresas de telefonia e energia, operadoras de planos de saúde, e de outro lado, advogados especialistas em demandar contra essas empresas em favor de seus clientes. Mas essas causas, muito dificilmente, serão objeto de arbitragem.
16 Segundo o Ministro Cezar Peluso, “a incomum circunstância de entidade que congrega diversas empresas idôneas (ETCO) associar-se, na causa, à Fazenda Nacional, para defender interesses que reconhece comuns a ambas e à própria sociedade, não é coisa de desprezar.” (AC 1.657)
17 Vide processo 1361/14.0YRLSB.L1-1, relatora Maria Adelaide Domingos, acórdão de 24/03/2015 (http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/d7f471fde47d350980257e2a004b026c?OpenDocument, acesso em 12 de novembro de 2017). Sobre o referido precedente, vide JÚDICE, José Miguel; CALADO, Diogo. Independência e imparcialidade do árbitro: alguns aspectos polêmicos, em uma visão luso-brasileira. Revista Brasileira de Arbitragem vol. 46 – jan/mar. 2016, p. 36-51.
18 INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Londres, 2004. Disponível em https://www.ibanet.org/Publications/publications_IBA_guides_and_free_materials.aspx, acesso em 12 de novembro de 2017. Sobre o Guidelines da IBA vide GOUVEIA, ob. cit., p. 205-206.
19 “4.1.1 The arbitrator has previously expressed a legal opinion (such as in a law review article or public lecture) concerning an issue that also arises in the arbitration (but this opinion is not focused on the case).” INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Londres, 2014. A versão da IBA Guidelines de 2014 não alterou, nesse item, a de 2004, que é a versão disponível em português.
20 Neste sentido, vide LÓPEZ, Carlos Alberto Matheus. La independencia e imparcialidade del árbitro. San Sebastián: Instituto Vasco de Derecho Procesual, 2009, p. 157-159; 224-225.
21 “The Orange List is a non-exhaustive list of specific situations that, depending on the facts of a given case, may, in the eyes of the parties, give rise to doubts as to the arbitrator’s impartiality or independence.” (Conferir p. 18 do referido Guia da IBA).
22 “The purpose of the disclosure is to inform the parties of a situation that they may wish to explore further in order to determine whether objectively – that is, from the point of view of a reasonable third person having knowledge of the relevant facts and circumstances – there are justifiable doubts as to the arbitrator’s impartiality or independence. If the conclusion is that there are no justifiable doubts, the arbitrator can act.” (Conferir p. 18 do referido Guia da IBA).
23 LOUSA, Nuno Ferreira. A escolha de árbitros: a mais importante decisão das partes numa arbitragem? V Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Intervenções). Coimbra: Almedina, 2012, p. 19.
24 PEREIRA, Frederico Gonçalves. O Estatuto do árbitro: algumas notas. V Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Intervenções). Coimbra: Almedina, 2012, p. 167.
25 JÚDICE, José Miguel; FERREIRA, Rogério Fernandes. A arbitragem fiscal: defeitos e virtudes. Liber Amicorum Alberto Xavier. In FERREIRA, Eduardo Paz; PALMA, Clotilde Celorico; TORRES, Heleno Taveira. Estudos em homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier. Coimbra: Almedina, 2013, p. 836.

 

Leonardo Varella Giannetti – Doutor e Mestre em Direito Público pela PUC Minas. Professor de cursos da pós-graduação em direito e processo tributário na PUC Minas. Coordenador do Contencioso Tributário no Martinelli Advogados.

Luiz Fernando Dalle Luche Machado – Advogado no Pinheiro Neto Advogados. Aluno do Mestrado Profissional em Direito Tributário da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.

 

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