A lei 4.886/65, que regula a representação comercial no Brasil, completa 60 anos. Esta legislação foi concebida para um Brasil analógico, baseado em vendas presenciais e catálogos impressos, onde a representação era a principal via para abrir novos clientes. Hoje, no entanto, o ecossistema comercial das empresas é radicalmente diferente.
O problema central reside no fato de que, enquanto a lei parou no tempo, as operações comerciais evoluíram para um ambiente que ela jamais imaginou. É justamente nesse descompasso histórico que se escondem os riscos jurídicos e financeiros para as empresas que contratam representantes.
Estagnação legislativa frente à evolução do mercado
Ao longo dessas décadas, as alterações legislativas foram insuficientes para resolver as limitações estruturais da norma. A reforma de 1992 falhou em modernizar o regime de representação comercial.
A alteração mais recente, em 2021, limitou-se a reconhecer que as verbas devidas ao representante comercial possuem natureza equivalente à dos créditos trabalhistas em casos de falência ou recuperação judicial. Iniciativas mais ambiciosas para revisar integralmente a lei 4.886/65 (como o projeto de lei 5.761/19) não prosperaram e foram retiradas de tramitação. Esse histórico evidencia não apenas a ausência de reformas, mas um descompasso estrutural em que o processo legislativo não consegue acompanhar a velocidade da evolução do ambiente comercial.
Realidade multicanal e os passivos ocultos
A distância entre a lei e a realidade moderna é a fonte primária dos maiores passivos. As empresas hoje operam em modelos multicanais, utilizando plataformas B2B, vendas remotas, CRM, marketplaces, contratos digitais e integrações híbridas. Estruturas internas muitas vezes se aproximam das atividades típicas de representação.
Apesar dessa complexidade, muitas empresas ainda gerenciam a relação com os representantes com a simplicidade do passado. Elas falham em documentar expectativas, critérios de comissionamento no ambiente multicanal, delimitações de carteira e impactos de mudanças operacionais. O resultado dessa falha na gestão contratual é um risco previsível de conflitos.
Gestão de conflitos e a fragilidade contratual
A maior parte dos litígios nasce da forma como as empresas administram, ou deixam de administrar, o relacionamento com o representante, e o problema vai muito além da concessão ou não de exclusividade.
O risco surge quando movimentos comerciais são realizados sem gestão, transparência ou alinhamento prévio. Exemplos disso incluem a retirada abrupta de clientes relevantes, a redistribuição silenciosa de carteira, a alteração unilateral do modelo de comissionamento ou a realocação interna de pedidos que antes eram conduzidos pelo representante. Para a empresa, esses são ajustes estratégicos do dia a dia, mas para o representante — e, frequentemente, para o Judiciário — essas mudanças podem ser interpretadas como quebra da lógica contratual, constituindo fundamento para rescisão indireta acompanhada de indenização.
Outro ponto recorrente de risco são as chamadas relações “verbais”. Relações construídas por meio de e-mails, mensagens, rotinas operacionais contínuas e pagamentos recorrentes configuram, de fato, a representação comercial típica, mesmo sem um contrato formal assinado. Nesses cenários, a empresa representada fica limitada às poucas proteções legais, e é a contratante quem geralmente arca com as indenizações, que poderiam ter sido evitadas com uma estrutura contratual adequada.
A multiplicação da complexidade do comissionamento
O ambiente multicanal também tornou obsoletas as regras tradicionais de comissionamento. Bases de cálculo mal definidas, conflitos entre vendas diretas e vendas por distribuidores, devoluções, inadimplência e controvérsias sobre a inclusão ou exclusão de impostos na base de cálculo são fontes permanentes de discordância que rapidamente se transformam em litígios quando não regulamentadas com rigor.
O desafio contemporâneo mais evidente está na estrutura de canais de venda. Um cliente pode utilizar múltiplas portas de entrada, o que é natural na operação moderna. Essa multiplicidade gera dúvidas constantes sobre a origem do negócio e sobre quem realmente influenciou a venda, pois a lei não dialoga com essa realidade multicanal.
Para o representante, certos clientes são fruto direto do trabalho de prospecção. Para a empresa, a aquisição pode ser vista como resultado do ecossistema integrado de canais. Essa falta de critérios claros abre espaço para disputas complexas sobre quem tem direito à comissão, qual canal originou a venda e se um pedido captado pelo e-commerce deve gerar comissão.
Aos 60 anos da Lei de Representação Comercial, o alerta é claro: o risco não reside apenas na senioridade da lei, mas na forma como a empresa administra a relação. Cabe às empresas atualizarem as práticas contratuais, revisarem carteiras, documentar expectativas e redefinir o comissionamento, alinhando os modelos de gestão à complexidade do mercado atual.
A empresa que não adaptar a gestão continuará operando com um passivo oculto, e crescente, que a legislação de 1965 não hesitará em revelar.
Marcelo Schiochett, coordenador da área Cível.